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JUM NAKAO: DESCONSTRUIR, ENTENDER, RESSIGNIFICAR E COMPARTILHAR

Poucas são as histórias que resistem ao tempo. Mais raras são aquelas que com toda tecnologia disponível ainda conseguem ver a beleza e o significado de suas criações.  Negócios são importantes, ampliação de mercados, expansão de atividades, mas acima de todas estas coisas está a importância da reinvenção. O design transformou-se ao longo do tempo, resistindo a crises, adaptando-se as alterações de cenários políticos e econômicos, com flexibilidade para provocar mudanças no cotidiano das pessoas.  Por isso, acreditamos que não há momento mais oportuno para entrevistar Jum Nakao. Resiliente e ousado, com espírito empreendedor, permitiu-se entender seu caminho e tomar novas direções para que tudo o que já havia aprendido pudesse ser efetivamente compartilhado.  Um dos maiores guardiões dos segredos do design do mundo todo, revela como a essência norteia seus feitos, sustenta e abre as portas para o sucesso, preservando suas raízes. Dividimos com vocês, uma das mais impactantes entrevistas já registradas na história do setor.

 

Por Sol Andreassa

 

REVISTA USE: conte-nos sobre as influências que recebeu durante a formação, suas memórias e expansão do conhecimento

NAKAO: nasci e cresci no Brasil. Respiro profundamente o meu país. Considero brasileiro tudo o que nasce ou é produzido aqui. Acredito no “Made in Brazil”. Precisamos apenas de valores e não nos valorizar, temos que trabalhar duro para obter sucesso! Na infância desmontava brinquedos, aparelhos eletrônicos, tudo que estivesse ao meu alcance na sede de compreender os mecanismos ocultos atrás dos movimentos, da imagem, do som, da mágica! Queria compreender como as coisas ganhavam vida. Sempre com muito cuidado e respeito por aqueles frágeis mecanismos que se abriam para revelar seus segredos. Era também muito importante fazê-los funcionar novamente. Passaram-se os anos e eu continuava a desconstruir o mundo. No seu devido tempo, a vida soprou a pergunta: o que vou ser quando crescer? Hora de expandir ou limitar fronteiras? Optei pelo caminho do meio, continuar a brincar, trabalhando! Decidi estudar eletrônica e computação, pois almejava interagir com o observador e expandir sua compreensão, propiciar novas relações com o entorno. O que de fato ocorre naturalmente hoje em dia, onde a influência das novas tecnologias como a internet, a eletrônica nas artes, e o mundo virtual mudaram as formas como as pessoas se relacionam e expandiram as possibilidades de compreensão do mundo exponencialmente. Mas os estudos acadêmicos de eletrônica eram distantes destas possibilidades. O ambiente acadêmico no Brasil era um terreno estéril para “Jobs e Zuckebergs” brasileiros. Decidi então, abandonar o curso para interagir através de algo mais real e próximo: a moda. O que me atraiu foi a acessibilidade da linguagem: todos se vestem de alguma forma. Uma linguagem – forma de se expressar – muito simples, dinâmica e democrática, o oposto da complexidade formal da eletrônica. Moda é uma das ferramentas mais poderosas de identificação de um tempo, ideologias, estéticas, pensamentos e mudanças. Não se veste um corpo. Se vestem intenções. A roupa é somente uma interface. Uma conexão entre o meio interior e o exterior. Um avatar que escolhemos. Passaram-se os anos, e a curiosidade e os meus objetivos continuam os mesmos, desconstruir, desmontar, entender, ressignificar, compartilhar. Sobre referências dessa área na família, meu avô materno desenvolvia cosméticos e minha mãe montou um salão de cabelereiros quando chegou em São Paulo.  Em seguida quando montei minha primeira empresa, ela se tornou minha costureira.

 

REVISTA USE: como foi o início de sua carreira?

NAKAO: comecei minha formação nos anos 80, época em que não haviam faculdades de moda no Brasil. Os cursos relacionados eram apenas corte, costura e modelagem. Cursei, mas achei superficial. Descobri o CIT, Coordenação Industrial Têxtil, uma instituição que organizava cursos com professores e profissionais do Brasil e do exterior. Estes cursos capacitavam os profissionais das empresas associadas. Por telefone obtive algumas informações e fui convidado para assistir algumas aulas. A pessoa com quem eu havia falado ao telefone me recebeu no primeiro dia de aula, era na época o diretor do CIT, Carlos Mauro Fonseca Rosas. Durante uma semana assisti todos os cursos e ao final deste contato inicial com as disciplinas tinha uma convicção maior de minha escolha. Mas, como não era funcionário de nenhuma empresa associada, não poderia participar dos cursos. Escrevi uma carta e consegui um estágio e uma bolsa na Rhodia, empresa associada ao CIT e passei então a frequentar os cursos. Posteriormente trabalhei com um alfaiate para compreender a relação da geometria dos traçados com o corpo humano e na sequência trabalhei com um joalheiro para estudar os acessórios e complementos da roupa. Ainda assim sentia a necessidade de um fundamento acadêmico. Fui estudar artes plásticas na FAAP.

 

REVISTA USE: nesta fase, o que pensava, quais suas referências e como vê sua evolução profissional.

NAKAO: Sempre pensei em mudar o mundo. Migrei para a moda e em 2004, realizei aquele que foi o meu último desfile no SPFW, “A Costura do Invisível”, o desfile de roupas de papel, que recebeu o título de desfile da década pelo SPFW e foi reconhecido como um dos maiores do século pelo Museu de Moda da França. É referência nas mais importantes publicações sobre moda e design do mundo e integra acervos internacionais de museus de arte e moda. A Costura do Invisível encanta porque modela sonhos e possibilidades, costura visível e invisível, borda permanência na efemeridade e ao revelar possibilidades de uma simples folha de papel, das quais todas as roupas do desfile foram feitas, que o encantamento encontra-se nos olhos de quem vê e crê, que não importa do que é feito, mas, sim, como é feito, que sonhos, mesmo que frágeis e delicados como os escritos ou feitos de papel, podem sobre-existir para sempre. Costura visível e invisível ao revelar através do rasgo, no final do desfile todas as roupas foram rasgadas e deixaram de existir, que além da forma deve haver conteúdo, que atrás de cada palavra deve existir um pensamento, pois o conteúdo sobrevive mesmo depois que a forma desaparece e os pensamentos reverberam em nossa memória, mesmo depois de pronunciadas as palavras. Borda permanência na efemeridade ao vestir sem existir, veste pessoas em seus pensamentos, a coleção de papel foi inteira rasgada em seu lançamento sem uma roupa sequer posteriormente ter sido produzida, e perdura através dos tempos como referência maior de moda. Assim como estrelas que morrem, mas deixam rastros de luz pelo espaço, precisamos compreender que nossos atos são como efêmeras centelhas no infinito, brilham para sempre, tem permanência no tempo e espaço. Após este desfile, encerrei as atividades da minha confecção. Não tinha planos e interrompia 25 anos dedicados à indústria da moda. Uma assistente que contratara na época, viu frustrada sua expectativa de continuar seu aprendizado e me disse: “acabei de entrar e você vai parar? Você ainda tem muito para me ensinar. O que você vai fazer com todo este seu conhecimento?”. Respondi que simplesmente não tinha planos e pedi desculpas.  Logo após, fui convidado pela diretoria da Faculdade de Artes Plásticas da FAAP, Fundação Armando Álvares Penteado – onde fui aluno, para realizar uma palestra sobre a minha trajetória. Logo ao término da palestra, o diretor da faculdade de Artes Plásticas me cumprimentou e confidenciou: “geralmente fico apenas no início das palestras para voltar às atividades da diretoria, mas sua fala me cativou e permaneci o tempo todo encantado com a sua aula, você nunca pensou em ser professor?”. Fiquei lisonjeado e internamente iniciei uma reflexão. Depois de 25 anos dedicados à indústria de moda, percebia que minha atuação como estilista pouco tinha transformado a sociedade. A decisão de interromper as atividades decorria deste fato e da constatação do efeito reverso: a minha sobrevivência como empresário e estilista implicava numa renúncia e num embrutecimento de afetos. O mundo não precisa de pessoas mais bem vestidas, o mundo precisa de pessoas melhores. Conclui que a educação seria o próximo passo do meu caminho. Atenderia os anseios da minha ex-assistente e o ensejo do diretor:  compartilhar conhecimento, vivências, saberes. Para transformar uma sociedade é necessário transformar o indivíduo. Uma pessoa transformada vale a empreitada. Às vezes é bom mudar a estratégia, a abordagem, mas continuar no caminho. Chegaremos num lugar, ou no mínimo sairemos transformados deste percurso. Além da academia, passamos a desenvolver projetos internacionais de grande porte, como forma de alcançar mais pessoas. É importante fazer o que acreditamos, dia após dia, insistentemente, lapidando nossa alma.

 

REVISTA USE: qual o seu envolvimento com o mundo décor?

NAKAO: especificamente se tratando de design industrial, iniciei no design de objetos através de um convite da Dominici em 2007, onde desenhei a luminária Risca de Luz, um projeto onde a luminosidade é controlada através da rotação de uma cúpula preta com riscos por onde vaza a luz. A densidade dos riscos é em dégradé, o que permite direcionar e ajustar a luminosidade. O nome Risca de Luz é uma adaptação poética do tecido clássico de alfaiataria Risca de Giz, uma homenagem direta à moda de onde sou egresso.

DPOT, 2009

Em 2009, recebi o convite para desenhar um móvel conceito para a Dpot. Havia recém chegado de uma exposição e ainda estava impregnado da exaustiva função de encaixotar, desencaixotar e instalar as obras. A sinapse foi imediata: facilitar. Propus uma linha de memórias transportáveis, sonhos encaixotados. O móvel comporia uma espécie de intervenção privada, onde a própria estrutura da caixa seria a moldura do trabalho. Uma estrutura vazada formando uma espécie de portal para a nova relação do olhar com o espaço onde a obra estivesse instalada. Uma abertura através de um vazado repleto de fantasias de nossas memórias e de sonhos, agora possíveis.

DPOT

TOK STOK, 2010

Totem com módulos cúbicos giratórios que possibilitam o direcionamento individual da face dos módulos para atender e integrar ambientes permitindo ajustes de acordo com variados ângulos de visão. Os módulos possuem o fundo em diferentes cores de acrílicos que substituem as portas. Ao invés de fechar, giramos as costas dos módulos para o ambiente onde se deseja eclipsar o conteúdo através destes filtros acrílicos. Proposta de flexibilidade expositiva e interatividade lúdica com o usuário.

 

A LOT OF, 2010

A convite da A Lot Of desenvolvi uma coleção de móveis em chapa metálica recortada a laser com pintura eletrostática. As linhas estéticas dos móveis buscaram conferir leveza ao material e o mesmo aspecto de fragilidade do papel. A referência utilizada para o corte a laser foi o mesmo padrão de renda de um dos vestidos de papel do desfile a costura do invisível. O design simples e lúdico das peças remete a seres egressos de um universo de pictogramas.

 

LINHA ÁGUA-VIVA, 2011

Inspirado na delicadeza dos tentáculos da água-viva, o metacrilato é cortado e fragmentado em finas tiras para conferir flexibilidade e leveza. Os traços de flutuação e sustentação de um corpo no espaço são desconstruídos e reconstruídos, nasce assim a linha de peças assinadas “O Invisível, por Jum Nakao”.

 

“Ao desenhar uma roupa, pensamos na espacialidade de um corpo no espaço; ao pensar em um móvel, desenhamos uma suspensão do movimento deste corpo no espaço.”

 

 

HOMENAGEADOS CASA COR SÃO PAULO, 2012

Mais do que realizar um ambiente dentro da Casa Cor, nesta nossa participação a proposta foi transportar o visitante para um outro espaço: um bosque com duas estações, outono e inverno. Uma para repousar e outra para revigorar. Para realizar os móveis deste lugar, recorremos a mais conceituada indústria de móveis, ou marcenaria industrial, como preferem seus proprietários, a Schuster. Desta parceria nasceu a linha de móveis Jum Nakao com a filosofia: “Consideramos fundamental propiciar através do design um momento de introspecção no dia a dia das pessoas, um estado de solitude, não no sentido de estar só, mas inteiro”.  Desenhamos através do design: harmonia, bem estar e felicidade.

 

 

APARADOR JUM NAKAO – BOAS VINDAS!

O aparador Boas Vindas! simboliza um divisor entre o dentro e o fora; recebe as pessoas e guarda em sua gaveta elementos de conexão entre estes universos, como chaves e pequenos objetos, a serem retomados somente no caminho inverso, ritualiza a experiência de se desconectar do mundo e dá as boas-vindas para a experiência de estar em casa.

 

POLTRONA JUM NAKAO – ACONCHEGO!

 

Tem seu design inspirado na concha da palma da mão e almofadas dos dedos, referência à acolhimento e segurança, como a mão que segura a cabeça de um bebê.

 

 

APOIO DE PERNAS JUM NAKAO – BOM DESCANSO!

O apoio de pernas Bom Descanso! complementa a poltrona Aconchego! para a experiência completa: ninar como um bebê.

 

MESINHA LATERAL JUM NAKAO – ENCANTO!

 

Com suas pernas desenhadas em movimento, parece ter vontade própria em querer caminhar para nos servir e encantar.

LUMINÁRIA TRIPÉ JUM NAKAO – OUTONO!

O outono é o tempo das folhas caírem e revelar as estruturas invisíveis. Esta em sua tríade, confere o tempo ao tempo. O galho intermediário com sua iluminação à altura dos olhos: o tempo para ler; o galho menor com sua iluminação voltada para objetos: o tempo para contemplar; o galho maior iluminando o alto: o tempo para refletir.

 

LUMINÁRIA DE PAREDE JUM NAKAO – BONS FLUIDOS!

A inspiração da luminária de parede Bons Fluidos! são alamedas iluminadas. Sua proposta é trazer para dentro de casa a experiência de caminhar por percursos ladeados por galhos e luz.

 

LUMINÁRIA DE MESA JUM NAKAO – MIMO!

Reproduzir a natureza em pequena escala, este é o conceito por detrás desta delicada luminária. A cúpula pode ser em versão branca ou em versão desenhada para projetar sombras de um pequeno bosque.

 

LUMINÁRIA DE PISO JUM NAKAO – EQUILÍBRIO!

 

As copas que reinam soberanas ao alto das árvores e resistem aos ventos e tempestades são inspiração para o design e a reflexão proposta pela Luminária Equilíbrio! A cúpula pode ser em versão branca ou em versão desenhada para projetar sombras de um pequeno bosque.

CRIADO MUDO JUM NAKAO – BONS SONHOS!

Evocar a sensação de dormir na clareira de um bosque, com água nascente ao lado, e desfrutar de um sono restaurador é a proposta desta peça.

 

BAR JUM NAKAO – VIVA!

 

Assim como os pássaros reúnem gravetos para formar seus ninhos, o Bar Viva! tem seu design concebido em camadas sobrepostas de madeira sobre uma base de galhos retorcidos. Os ovos nos ninhos guardam uma vida, o Bar Viva! nos convida a celebrá-la!

 

MESA JUM NAKAO – HARMONIA!

A mesa é o local onde compartimos mais do que alimentos, ideias, afetos, é onde buscamos o espírito da harmonia.

 

CADEIRA JUM NAKAO – NUVENS!

 

 

As copas das árvores remetem às nuvens, assim como nuvens remetem às copas das árvores. A Cadeira Nuvens! de design naif nos desarma para o necessário estado de espírito para degustarmos a vida e assim nos sentirmos literalmente nas Nuvens! E ainda design de feiras e stands.

REVISTA USE: o que mais gosta de criar?  Como acontecem seus processos criativos?

NAKAO: criar exige clareza de princípios, valores éticos e morais, sabedoria para sonhar, entendimento para realizar, humildade para construir, generosidade para compartilhar.  Sem princípios não temos fim, podemos acabar em qualquer lugar ou chegar a lugar nenhum. Onde tudo serve, qualquer destino é lugar. Sem princípios, mesmo chegando, sentimos que não alcançamos. Valores éticos e morais são a base da dignidade. O fim não justifica os meios. De nada adianta alcançar com o vazio do merecimento. O valor da recompensa é a lisura da conquista.  Sabedoria para decidir quais sonhos sonhar. O princípio é apenas um norte. Para construir um sólido caminho, precisamos de sabedoria para não cair. Sonhos são a pavimentação desta nossa jornada. Entendimento para não desperdiçar a oportunidade de construir. A ferramenta em si não é nada. Ela apenas significa o poder de construir ou destruir. O poder corrompe através do ego e da vaidade. O entendimento esvazia o ego e a vaidade para justo e correto uso do poder. Humildade para construir. Quando criamos servimos a matéria. Lapidamos e polimos para que a matéria apresente o seu máximo valor. Em nossa entrega descobrimos que servimos por servir. Ao conferir visibilidade ao que era invisível, manifestamos a significância da vida humana. Generosidade para compartir princípios, valores, sonhos, entendimento, ensinamentos e transformações através da entrega pessoal e da criação para o outro. Criar não é fácil nem difícil, é o desígnio natural de todos. Nos sentimos criativamente confortáveis, quer seja na subida ou descida, quando encontramos nosso caminho. A pergunta que devemos nos fazer é: qual o meu caminho?

 

REVISTA USE: é possível aliar a natureza e customização, oferecendo reconstrução ou construção criativa dos objetos do dia a dia?

NAKAO: considero fundamental aliar a natureza e customização, desconstruir mitos, decodificar as inspirações, para se tornar uma referência. Somente através da desconstrução de referências é que é possível responder ao enigma: decifra-me ou devoro-te! Recentemente, fiz uma palestra que falava sobre a questão do reuso, da reciclagem, do repensar e da reflexão. São os quatro “erres”. A palestra se chama motainai, que significa desperdício em japonês, e se referia ao desperdício não apenas da materialidade, mas o desperdício das diferenças entre as potencialidades humanas, que é o maior desperdício que nós estamos enfrentando, o desperdício da humanidade. A humanidade se tornou uma máquina. A máquina é capaz de produzir em série modelos, é capaz de produzir em série comportamentos, produzir em qualquer lugar aquele produto. A capacidade de reprodução de um modelo de forma perfeita é um atributo de máquinas. A sociedade se tornou uma máquina, e cabe ao homem humanizar as máquinas.

 

REVISTA USE: em sua opinião, quando a arte se mistura com o design? E que impacto essa mistura traz para os consumidores?

NAKAO: o design de objetos e a arte atribui valor e sentido além da pele. Ambos significam para o observador mesmo na ausência do usuário. O design de objetos emoldura a existência humana. É arte em si como uma instalação artística.  O impacto é a transformação, o despertar de percepções adormecidas.

 

REVISTA USE: a internet das coisas tem mudado o processo de criação de produtos no Brasil? Qual sua percepção?

NAKAO: a maior mudança percebida nos últimos anos foi o acesso através da inclusão econômica, social e virtual. Arte, design e moda se tornaram acessíveis em algum formato para uma maior parcela da sociedade. Após a democratização, o próximo passo natural, e esperado, é a qualificação.

 

REVISTA USE: é possível encontrar novas matérias-primas, formas e formatos para revolucionar a indústria moveleira nacional?

NAKAO: a beleza. Minha última descoberta foi perceber que buscamos sempre a beleza, no intuito de alcançarmos elevação espiritual. Através dela nos elevamos e nos sentimos bem. Neste estado todo o nosso interior se transforma e consequentemente nossa percepção do exterior, também. Emanamos do interior para o exterior uma transformação proativa. O mundo ao nosso redor passa a espelhar o nosso estado de espírito. Nos transformamos na mudança que queremos no mundo. Muitos projetos de design carecem deste conceito. Buscam somente aspectos sensacionalistas e perdem a essência da beleza.

 

REVISTA USE: para você, quando o artesanato brasileiro é valorizado?  É possível “ganhar o mundo” com estas técnicas, produtos e resultados? 

NAKAO: em sociedades emergentes, grifes e marcas se tornam símbolos de poder e ostentação em detrimento do valor do design. Ainda temos um longo caminho para criar tradição, cultura e valorização do design e artesanato nacional, internamente e no exterior. Além da questão cultural, enfrentamos um grave problema estrutural no Brasil que inviabiliza a produção e competitividade do produto “Made in Brazil”. Nossa “marca” precisa ser melhor trabalhada para gerar uma nova percepção das potencialidades do país no exterior. O consumidor internacional pouco ou nada afere de valor ao design, artesanato brasileiro, comparativamente aos outros players internacionais (design italiano, francês, japonês, países nórdicos, etc.). Sem a aceitação do consumidor internacional, o design brasileiro e a cultura estão predestinados à clausura e ao desaparecimento. Um projeto que merece menção, principalmente pela forma como foi construída e legado, é a coleção “A Hora do Brasil”. Pela primeira vez na história uma coleção foi desenvolvida em tempo real durante uma semana de moda. Concebemos o formato “Reality Project” e implantamos em Fortaleza, o resgate de tradições e saberes locais de forma transversal com o design e a tecnologia. O Reality Project é um sonho que se tornou realidade em 2012, graças à parceria com o SENAC. Sempre sonhei em compartilhar o processo, o saber e o fazer, de forma irrestrita. Realizamos o Reality Project ao vivo durante uma das mais importantes semanas de moda do Brasil, o Dragão Fashion, para que a abrangência do projeto fosse a maior possível. A partir da resposta ao edital, a redescoberta do paraíso brasileiro, convidamos 20 participantes entre estudantes de moda, rendeiras, seleiros, artistas plásticos, joalheiros, designers gráficos, designers têxteis, costureiras, modelistas entre outros para compartilhar saberes e experiências. Em nossa primeira reunião elencamos as tipologias e saberes locais que embalariam o nosso projeto: a rendaria,  xilogravura,  selaria e a rede. Criamos um ateliê aberto, sem segredos industriais, com paredes transparentes para que todos visitantes do evento pudessem acompanhar ao vivo e pela internet o nascimento, o crescimento e a apresentação final no formato de desfile de uma coleção. Pela primeira vez na história uma coleção completa foi desenvolvida e apresentada em tempo real durante uma semana de moda. Reunimos num só lugar a jovialidade dos mais velhos com a sabedoria dos mais jovens, propiciamos a integração de linguagens e o rompimento das fronteiras do saber, experimentamos e revelamos novas possibilidades das matérias. Hierarquias humanas e das matérias foram liquefeitas durante a primeira etapa do processo de trabalho e assim descobrimos juntos, o novo. A partir destas novas alquimias, começamos a construir nossa coleção. As maiores dificuldades foram as de ordem prática. Trazer um sonho para o mundo real implica em praticar a diplomacia com o possível. Reordenamos as pedras do caminho para que elas se tornassem pavimento para as etapas seguintes e não obstáculos em nossa caminhada. Ao final fomos todos recompensados, rendeiras se descobriram escultoras, seleiros se perceberam como arquitetos, designers desvelaram desejos dos recônditos das matérias, costureiras alinhavaram pontes entre saberes, modelistas moldaram o imaginário e por fim compartilhamos a redescoberta do paraíso brasileiro.

Luminária Renda

REVISTA USE: o setor da moda realiza grandes eventos, e a exposição destas criações muda o dia a dia de todas as pessoas, classes e níveis sociais. Isso também acontece no mundo da decoração?  Existe um caminho a ser trilhado?

NAKAO: até 2004, havia um descompasso entre a ascensão dos eventos e a desaceleração do setor moda em nosso país. A efervescência gerada pelos eventos não refletia a crise de longa data instaurada no setor que chegava neste ano ao seu ápice.  A crise atual das semanas de moda, agora em sintonia com a realidade do setor, revela a “bolha fashion” que atinge desde a educação, a indústria, o comércio e todo o segmento. O foco da análise não deve ser os eventos de moda, mas a falta de estrutura do país em gerar conteúdo e investimentos em todos os setores produtivos. Para o Brasil ser competitivo, precisamos repensar e reformá-lo, ter sonhos dignos e lutar por eles. O caminho é a moralização através da fiscalização, denúncia e conscientização pelas redes sociais, iniciativas e concepção de modelos de negócios em novas plataformas.

 

REVISTA USE: qual o maior desafio do designer de produtos moderno?

NAKAO: no mundo todo, percebemos um anestesiamento geral. Uma indiferença generalizada sobre processos e essência. Cada vez mais necessidades cavalares de efeitos especiais e culto ao ego para sensibilizar o público. Não se vive mais a própria história, terceirizamos nossa existência para avatares personificados por terceiros.  Os desejos do mundo moderno substituíram os sonhos individuais por modelos reproduzidos sem limite de cópias. Não se sonha mais, se consome produtos sem autenticidade e incapazes de nos reconectar com nossa humanidade. Acreditamos no design dos afetos. É imprescindível resgatar a capacidade das pessoas sonharem, se sentirem dignas e merecedoras do melhor. A cura nos parece ser através da reconexão com a dignidade. O mundo precisa de vocês designers, façam um mundo melhor!

 

REVISTA USE: quando a tecnologia torna-se fundamental para o processo criativo e a expansão das fronteiras da criatividade e reconhecimento?   

NAKAO: é fundamental o domínio da tecnologia.  Através dela surgem novas formas de abordagem e construção de pensamentos, mas sem conteúdo se tornam apenas ornamentos sem significância. O design pode e deve fazer uso das novas tecnologias para expandir as construções de linguagem. Existem saberes fantásticos que não podem ser perdidos, conhecimentos de técnicas que precisam ser resgatados, preservados e valorizados. O vetor cultura e tradição deve dialogar com o vetor inovação e tecnologia.  A base de qualquer expressão construtiva começa pelo domínio técnico. Investir em inovação tecnológica, em design é a mais rápida forma de inserção e diferenciação do Brasil no mundo. Ao dominar uma nova tecnologia, produziríamos conteúdo material e imagético globalmente reconhecidos, os quais abririam portas para um leque maior de produtos nacionais.


CONTANDO TUDO

Nome Completo: Jum Nakao

O que faz logo ao acordar: arrumo a cama

Descendência: japonesa

Profissão: artista multimídia, designer e diretor de criação

Visão do mundo: emanamos do interior para o exterior uma transformação proativa. O mundo ao nosso redor passa a espelhar o nosso estado de espírito. Nos transformamos na mudança que queremos no mundo.

Visão da Arte: a experiência artística pressupõe diálogo e troca entre as partes, obra e observador. Sem que ocorra este fluxo e alteração de estados, a arte não existe.

Visão da Moda: a moda assim como todo e qualquer design que nos cercam são extensões de nosso corpo, nossa segunda, terceira, quarta pele.

Resumo de criatividade: a natureza humana é criativa e não executora. Não somos máquinas. Como seres humanos procuramos sentido no que fazemos.

Relação de mundo e arte: o criador deve estar conectado com o entorno, fora da redoma, criar para o mundo em interação com a sociedade e estabelecer diálogos abertos e multiplicadores, e assim propiciar o crescimento das pessoas, para que elas possam aprender e aprimorar suas referências

O que o silêncio representa para você: o silêncio é como um imenso vazio. Espaço para voos.

O que é o sucesso para você: disciplina constante para não desvirtuar a sua glória

O que representa “surpreender” as pessoas? Revelar suas próprias potencialidades

Amores: família

Fé: esperança inabalável

Desejos: trilhar o bom caminho

 

 

MINI BIOGRAFIA

 

Jum Nakao é mundialmente reconhecido por seus impactantes trabalhos nas mais diversas áreas. Nakao é famoso pela sua performance realizada em 2004 no SPFW. Ao final modelos rasgaram elaboradíssimas roupas de papel, “A Costura do Invisível”; considerado um dos maiores desfiles do século pelo Museu de Moda de Paris. Na cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos em Londres em 2012, Nakao foi o designer de Apresentação do Brasil. A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, delegou a Jum Nakao uma instalação inspirada no filme “Marie Antoinette” de Sofia Coppola.

 

 

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